Por
Olavo de Carvalho
Agora
que os mensaleiros estão no fundo do poço, não cessam de erguer-se vozes
indignadas de petistas, comunistas e socialistas fiéis que os condenam como
oportunistas e traidores. Mas por que deveria algum líder ou militante ser
atirado à execração pública pela simples razão de ter cumprido à risca a sua
obrigação de revolucionário? Não é certo que a estratégia marxista-leninista
ordena e determina não só atacar o Estado burguês desde fora, mas corrompê-lo
desde dentro sempre que possível para em seguida acusá-lo de depravado e ladrão
e substituí-lo pelo Partido-Estado? Não é notório que, na concepção mais ampla
e sutil de Antonio Gramsci, inspirador e guia da nossa esquerda há meio século,
a corrupção do Estado não basta, sendo preciso estendê-la a toda a sociedade, quebrantar
e embaralhar todos os critérios morais e jurídicos para que, na confusão geral,
só reste como último símbolo de autoridade a vontade de ferro da vanguarda
partidária? Não é óbvio e patente que, se na perspectiva gramsciana o Partido é
"o novo Príncipe", ele tem a obrigação estrita de seguir os ensinamentos
de Maquiavel, usando da mentira, da trapaça, da extorsão, do roubo e do
homicídio na medida necessária para concentrar em si todo o poder, derrubando
pelo caminho leis, instituições e valores?
Na
perspectiva marxista, nenhum dos artífices do Mensalão fez nada de errado,
exceto o crime hediondo de deixar-se descobrir no final, pondo em risco o que
há de mais intocável e sagrado: a boa imagem do Partido e da esquerda em geral.
Para
não perceber uma coisa tão evidente, é preciso desviar os olhos para os
aspectos mais periféricos e folclóricos do episódio, apagando da memória a
essência, a natureza mesma do crime cometido. Que foi, afinal, o Mensalão? Uma
gigantesca operação de compra de consciências. E para quê as consciências foram
compradas? Para enriquecer os srs. José Dirceu, Genoíno, Valério e mais alguns
outros? De maneira alguma. Foram compradas para neutralizar o Legislativo e
concentrar todo o poder nas mãos do Executivo, portanto do Partido dominante.
Que pode haver de mais leal, de mais coerente com a tradição marxista?
Toda
a geração que, cinqüentona ou sessentona, chegou ao poder nas últimas décadas
foi educada num sistema moral onde as culpas pessoais são insubstantivas em si
mesmas, dependendo tão-somente da cor política e transmutando-se em virtudes
tão logo tragam vantagem ao "lado certo" do espectro ideológico. Bem ao
contrário: segundo o que essa gente aprendeu desde os tempos da universidade,
qualquer concessão à "moral burguesa", se não é útil como jogo-de-cena
provisório, é delito maior que a consciência revolucionária não pode tolerar.
Nessa ótica, que pode haver de mau ou condenável em juntar dinheiro por meios
ilícitos para comprar consciências burguesas e forçá-las a trabalhar, volens
nolens, para o Partido Príncipe? Uma vez que se abandonou a via da
revolução armada - não por reverência ante a vida humana, mas por mera
oportunidade estratégica -, que outro meio existe de instaurar a "autoridade
onipresente e invisível" senão a corrupção sistemática dos adversários e
concorrentes?
Não
faltará quem, movido pela incapacidade geral brasileira de conceber que um
político, ao meter-se em tal embrulho, o faça movido por ambições muito mais
vastas que o mero desejo de dinheiro, levante aqui a objeção: Mas os
mensaleiros não ficaram ricos?
Ficaram,
é claro, mas desejariam vocês que eles depositassem todo o dinheiro sujo na
conta do Partido, atraindo suspeitas sobre a própria organização em vez de
protegê-la sob suas contas pessoais como bons agentes e testas-de-ferro? Ou
desejariam que, de posse de imensas quantias, continuassem levando existências
modestas, dando a entender que eram apenas paus-mandados em vez de expor-se
como vigaristas autônomos e bandidos comuns sem cor política, que é como agora
são vistos por uma opinião pública supremamente inculta, sonsa e - novamente -
ludibriada?
Pois
induzir o povo a vê-los exatamente assim, salvaguardando a boa reputação do
esquema de poder partidário que os criou e ao qual serviram, é precisamente o
objetivo de toda essa corja de moralistas improvisados que agora os cobre de
impropérios em nome da pureza e idoneidade da esquerda.
Os
mensaleiros não são, é claro, bodes expiatórios inocentes. São culpados
parciais incumbidos de pagar sozinhos pela culpa geral de uma organização que
há trinta anos vem usando do discurso moral, com notável eficiência, como
disfarce e instrumento do crime.
Os
que agora tentam se limpar neles são ainda piores que eles. Pois o que fazem é
tentar levar o povo a esquecer que os mensaleiros de hoje são os moralistas de
ontem, os mesmos que, nas CPIs dos anos 90, brilharam como paladinos da lei e
da ordem, enquanto já iam preparando, sob esse manto cor-de-rosa, o esquema de
poder monopolístico do qual o Mensalão viria ser nada mais que instrumento. E
para que fariam isso, se não fosse para aplanar o terreno para novos e maiores
crimes?
Se
os indignados porta-vozes do antimensalismo esquerdista tivessem um pingo de
sinceridade, teriam se insurgido, anos atrás, contra o acobertamento petista
das Farc, organização terrorista e assassina, perto de cujos crimes o Mensalão
se reduz às proporções de um roubo de picolés num carrinho da Kibon. Como não o
fizeram, a narcoguerrilha colombiana cresceu até tornar-se, sob a proteção do Foro
de São Paulo, a maior distribuidora de drogas no mundo, prestes a receber do
sr. Juan Manuel Santos, sabe-se lá em troca de quê, as chaves do poder político.
Fonte: "Diário do Comércio", edição de quarta-feira, 17
Um comentário:
Tenho até pena dos jovens de hoje, que começaram a ter contato com a política nessa era petralha. O que se pode esperar da cabeça dos futuros adultos, depois da amostragem que estão tendo hoje, dos governantes petistas?
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